Nome: Manuela Serra

Idade: 74

Profissão: Realizadora 

As tua obras mais significativa da carreira profissional: O Movimento das Coisas

Como começou a tua vida no cinema?

Regressei de Bruxelas, onde vivi durante três anos. Estudei cinema numa escola de artes. Depois regressei a Portugal em 74, depois do 25 de Abril. E entrei logo em contacto com as pessoas do cinema que também estavam e tinham vivido em Bruxelas. Conheci várias pessoas ligadas ao cinema. Eles estavam a fazer uma cobertura dos acontecimentos e eu comecei a trabalhar na montagem. Trabalhei em montagem durante um período longo. Foi assim no início do cinema.

Qual é a tua situação profissional actual? 

Sorrindo. Já tenho 74 anos. Estou em casa reformada, não tenho atividade. O que eu fiz agora é ir a alguns festivais, acompanhar o meu filme “O movimento das coisas”. Esta é minha atividade no cinema. Mas não estou ligada de outra forma ao mundo do cinema. Só desta forma. Fiz parte do júri no Doc Lisboa, por exemplo, mas foi uma coisa pontual. Já estou desligada do meio já há muitos anos. 

Tu és feminista? E que o entendes por isso?

Depende do sentido que dermos à palavra. Porque feminismo já há muito. E passa-se uma coisa que me preocupa muito: as mulheres entram para a política e começam a agir como os homens, em vez de defenderem aquilo que é feminino. Isso é um risco. É um risco que existe em alguns movimentos. Mas gostaria que as mulheres se unissem mais. Não vejo outra solução. As mulheres poderiam discutir mais umas com as outras. Sem dúvida. 

O Movimento das Coisas é um filme que retrata maioritariamente as mulheres rurais, trabalhadoras, criadoras, -  a tua ideia inicial era chamar o filme“Mulheres”. O que te interessava retratar nas mulheres?  

Quando pensei nas mulheres e fazer um trabalho sobre elas, inicialmente minha ideia foi uma coisa mais coletiva e mais generalizada, mais focada nas desigualdades e focar nesse problema. Depois compreendi que isso era demasiado complexo. Além disso, as mulheres não se entendiam muito entre elas e eu não acredito que se construa nada em competição, tem que ser com cooperação e não competição. E eu não consegui isso. O que me fez logo trabalhar em “O Movimento das Coisas”. Neste filme, a minha ideia era mostrar as mulheres, em vez de ter um discurso. Em vez de falar sobre as mulheres, optei por mostrá-las. E depois escolhi o Minho para filmar. Porque quem conhece Portugal um pouco, sabe que é a região onde a mulher na época estava mais afirmada, porque houve uma quase massiva emigração dos homens do Minho. Foram para França, Canadá e outros países da Europa para procurar trabalho. E as mulheres ficaram sozinhas e tiveram que se agarrar ao trabalho do campo e elas faziam tudo. Quando os homens regressaram naturalmente cumpriam um papel mais passivo, porque elas já tinham tomado praticamente conta de todo o trabalho e demais. Então esta parte pareceu-me mais interessante em mostrar as mulheres. 

Sinto uma grande sensibilidade no teu olhar de ver e retratar as mulheres. O que me fascinou foi que em todas as ações pequenas, incluindo o que as mulheres faziam nas suas tarefas e trabalho diário, parecia haver uma beleza, é algo quase sagrado, muito natural e feminino das mulheres. Era a tua intenção de retratar as mulheres com estas acções quotidianas, muitas vezes pequenas? 

Sim. São belas as mulheres no seus trabalhos. São muito belas. Claro que procurei torná-las ainda mais belas, talvez a sobressair beleza. Foi uma preocupação da minha parte. Porque acredito que o belo e o bom estão ligados. É uma maneira de as enaltecer, é uma forma de mostrar, porque é uma verdade que elas são assim. Elas não fingiram. Não quer dizer que quando uma pessoa esteja cansada, que seus gestos não sejam tão belos. Gosto do prazer de utilizar as mãos e o corpo no trabalho. O prazer do gesto. Faziam com gosto, não havia sacrifício. Se custasse, faziam-no com gosto. Esse eu acho que se perdeu um pouco da nossa sociedade. Faz-se tudo à pressa e sob pressão, portanto, não podemos usufruir do que fazemos e está sempre tudo a correr. Não há prazer, é um bocado esse contraste, quis acentuar isso.

Estiveste muito envolvida em todos os processos, como a edição, a produção, pós-produção e a direção. Era mais por necesidade que por vontade própria. Numa entrevista disseste que o cinema foi misógino e que houve pessoas ligadas ao poder que te impediram de seguir. Podes explicar um pouco mais?

Tinha uma equipe a distribuir. Tocava em tudo e às vezes não tinha quem fizesse e faria eu mesmo, como a sonoplastia. Porque a montadora regressou a Bruxelas, portanto, no final tive que fazê-lo porque a cooperativa desfez-se. 

Por quê? Eu li numa entrevista, que o meio cinematográfico era profundamente machista e misógino… 

Eu tive problemas. O filme causou impacto dentro da cooperativa e houve quem não gostasse. E de tal ponto que tentou que eu não conseguisse acabar o filme. Eu fui alvo de muitas ações da parte do líder, digamos, da cooperativa. Desde me bater, a roubar dinheiro, acusando-me que eu tinha conseguido dinheiro no Instituto Português de Cinema, e eu nunca ouvi nem sabia desse dinheiro. Portanto, tive problemas de produção para continuar a receber as prestações do Instituto Português de Cinema porque aquele indivíduo me acusou de ter gasto um dinheiro que eu nunca tive nem sabia. Portanto, ele fez imensas ações para eu não acabar o filme, inclusivamente com o dinheiro que conseguiu captar do instituto, ele aliciou os outros elementos da cooperativa a acabar com a cooperativa e irem fazer um trabalho com ele, com este dinheiro. Eu tenho que dizer que houve uma reação da parte dos homens muito negativa para mim, tentando abafar o que eu não terminasse o filme. Mais tarde, depois, eu consegui fazer o filme e o filme teve impacto no estrangeiro, em festivais. Aqui em Portugal foi ignorado pelos mais poderosos. Foi ignorado. Não me abriram nunca nenhuma porta para eu continuar.

Achas que os problemas que confrontavas, eram por seres mulher também?

Com certeza. Se fosse um homem…  Os homens protegem-se a eles e sabem que se há um homem que vinga, fica com uma roda de outros homens que o apoiam… E com as mulheres não. Não tenho dúvidas. Não permitiam que mulher nenhuma se distinguisse. Isto não, não era possível nada.

Mas tu percebes que as coisas já mudaram? E qual mudanças positivas tu sentes existem para as mulheres hoje em dia?

Pelo que vejo, de facto há mais mulheres [no cinema]. Isso é inegável. Sem dúvida que as mulheres têm mais acesso hoje e muitas vezes até que por conveniência abrem as portas às mulheres. É uma questão que é social e que é bem visto pela sociedade. Mas continua na mão dos homens. Não só o cinema, mas o mundo todo. O mundo é dos homens, não é nosso. Nunca nenhuma mulher se lembraria de invadir outro país. São homens. As mulheres têm um peso muito pequeno nas decisões da sociedade e consequentemente no meio do cinema é a mesma coisa. Continua ser dos homens. É suspeito que aqui em Portugal nunca será facilitado um trabalho mais profundo feito por mulheres. Coisas mais pontuais, temáticas, isso sim. Mas nunca um trabalho assim do fundo. Não acredito que as mulheres consigam fazer isto aqui em Portugal. Até porque, politicamente, é conveniente que assim seja. 

Criarmos a MUTIM é um ponto de partida para mudar as coisas. Muitas mulheres que se juntam e estão a lutar por algo melhor. A nossa intenção acreditar que podemos mudar alguma coisa no cinema e audiovisual  e também aumentar um pouco mais a visibilidade das mulheres.

É muito interessante e louvável. E eu estou contente, e muito feliz. Não há muito em Portugal, esta tradição de mulheres se unirem. Fico contente. 

Tiveste que esperar quase 35 anos para poder lançar teu filme comercialmente…

Sim, 40 anos, acho. 

E achavas que seria possível em algum momento ou já não acreditavas que ía acontecer?

Não, já não pensava. Quase que me tinha esquecido que tinha feito um filme (sorrindo). Que não entrava na minha vida, era uma coisa que os meus amigos ouviam falar, que eu tinha feito um filme, mas não tinham a dimensão do que é que eu tinha feito. Fui privada de usar esse facto e de ter feito aquele trabalho como se não tivesse feito nada. Ora, isso é destrutivo. Se a sociedade não te reconhece, começa a ficar muito desconfiada da sociedade em que estás inserida. Precisava desta. E pronto, fiquei de fora. Foi isso. Mas estarmos fora faz-nos muito críticas em relação ao que se passa nesta cidade. 

Foste fundadora de uma cooperativa artística. Acreditas ainda hoje no funcionamento das cooperativas? Achas que podem ser uma boa ferramenta para o cinema?

Eu acredito. Mas é importante que as pessoas no início formalizem o motivo por que querem ir para uma cooperativa. Quando se começa há o entusiasmo. E tudo bem. Mas as pessoas não definiram porque é que querem a cooperativa. Porque se quando há problemas, tem que se ir procurar a definição que foi feita no início. A experiência que tive começou a degenerar, cada um olhava para os seus interesses em vez de se manter o sistema cooperativo. Portanto é necessário que sejam definidos os objetivos, que as pessoas os definam. Cada um escreve o que se pretende da cooperativa para ser confrontado caso os seus interesses se comecem a desviar do que foi no início. Mas o sistema cooperativo é dos mais interessantes. É a própria palavra o que diz: cooperar e não competir. 

O que aconselharias as mulheres companheiras de cinema atual?

Que sonhem umas com as outras, porque é a única maneira de sermos mais fortes, de fazermos frente aos prejuízos e privilégios masculinos. Sobretudo, se não nos unirmos, não saímos do sistema comparativo. Esta sociedade está sempre em tornos de que a mais bonita, da outra que tem isto, tem o carro e tem o vestido. Tem de sair deste caldo imposto pela sociedade. Portanto é isso que posso dizer às mulheres, é que se unam e discutam….  Eu tenho que agradecer às mulheres todas que me têm apoiado nesta segunda vida d’O Movimento das Coisas. 

“Eu tenho que agradecer às mulheres todas que me têm apoiado nesta segunda vida d’O Movimento das Coisas. “

Depois do lançamento comercial do teu filme, sentiste que ele te trouxe paz e reconhecimento?

Estou muito satisfeita e até comovida pelo que se tem passado, agora que as pessoas o viram. O filme tem sido muito solicitado, tem passado no país todo, nos cineclubes. Ainda não parou. Desde há um ano que está sempre a passar, até a festivais no estrangeiro tem ido. O público e as pessoas, mesmo aqui em Portugal, têm sido muito afetuosas para mim. Eu tenho tido o contrário do que tive há 30 anos. As pessoas são todas muito acolhedoras, tratam-me muito bem, são muito simpáticas. É exatamente o contrário do que foi no passado. 

Sim, compreendo isso. Certamente que teria sido melhor ter a estreia há 40 anos. Notei algo de intemporalidade no teu filme. Sinto que de certa forma é muito atual e que existem muitos temas atuais e universais.

Sim. É verdade. Quanto a mim, tem um problema ainda mais urgente resolver e as mulheres deviam pegar muito nisso, que é as alterações climáticas a travar este desenvolvimento voraz, esta exploração das pessoas e do planeta. Acho que estamos num processo de autodestruição. 

Também a nossa perda com as tradições e a nossa conexão com a natureza.

Tudo já é destruição e a infelicidade. O ser humano tem que estar na natureza. Esse bulício da cidade impede-nos de sentir a vida. Estamos sempre com barulho e música e os automóveis. O ser humano necessita da natureza para se encontrar e encontrar verdades. Não é no meio desse barulho, desta confusão, desta pressão. Eu acho que isto é destrutivo e há quem ganhe com isso. O silêncio da mulher é sempre uma coisa que eu acho curiosa, é que em Portugal nunca se fala. Deixaram de falar daquela jovem. Acho que era sueca, Greta. Nunca mais se falou em ela.

Há uma frase tua que li e que gostei muito: “Temos que nos entender pela sensibilidade!” O que queres dizer com isto?

Sorrindo. Nós já não temos capacidade de nos ouvirmos uns aos outros. É como se tivéssemos perdido a capacidade de escutar. Não ouvimos. Não damos atenção ao sentido do ouvido. Os franceses dizem ouvir e sentir, o sentido do ouvido. O que nos faz a ligação, que nos dá disponibilidade. Se formos capazes de ouvir os outros com toda a atenção, ficamos mais sabedores dos outros e de nós e da sociedade em geral. 

(Há alguma coisa que tu gostasses de dizer agora? Estás à vontade para contar algo mais, algo que queiras transmitir.)

Apesar de tudo, foi muito bom para mim esta nova vida d’O Movimento das Coisas. Pouco a pouco também me senti mais forte. Eu tenho que agradecer a quem contribuiu, têm sido muitas pessoas a fazer que isto aconteça. 

Tu vês cinema, vais ao cinema?

Muito pouco, tenho uma vida muito isolada. Durante muitos anos evitava e não queria. Desgostava-me. Interessei-me mais pela música, pelas artes plásticas. Magoava-me ver cinema, e depois ficou um hábito. Mas se alguma amiga me desafia, eu vou. Mas perdi a iniciativa de ir.

A autora é nossa associada: Kathrin Frank 

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