Foto: © Gabriel Renault

Nome: Cláudia Varejão

Idade: 42 anos

Profissão: Realizadora

As duas obras mais significativas da carreira profissional: Para mim são todas significativas. 

Onde e em que função trabalhas e qual é a tua situação profissional atual?

Sou realizadora. Sempre foi este o meu posto dentro do cinema. Nos primeiros anos ainda trabalhei como directora de fotografia, pois tinha sido essa a minha primeira aproximação aos filmes. Mas rapidamente descobri que o meu lugar é a seguir os meus caminhos interiores que se revelam em formas exteriores: os filmes.

Actualmente estás confiante (ou não), relativamente às possibilidades de trabalho para as mulheres e dissidentes na área do Cinema e Audiovisual? 

Mais do que confiante, estou envolvida para que o caminho seja ascendente e em abertura permanente. E não só para as Mulheres mas para toda a diversidade de pessoas e provenientes dos mais diversos contextos. Acredito na expansão humana que nos traz a pluridade, e na capacidade transformadora e regeneradora que as representações diversas podem trazer às nossas vidas.

Mais uma vez, parabéns pelo prémio em Veneza dado a “Lobo e Cão”. Como surgiu a ideia de fazer um filme queer no contexto de uma vida insular e isolada? 

O filme é o resultado de um longo processo de pesquisa e de enorme interesse pelo tecido humano da ilha de São Miguel. Ou melhor, encontrei naquele território uma amostra da vida humana em sociedade que me pareceu representar fielmente os ganhos e os conflitos com que todes nos debatemos. 

A primeira vez que estive em São Miguel foi a convite de uma residência artística do Pico do Refúgio. Num dos primeiros dias dessa temporada, desci até à zona piscatória mais próxima e fiquei a observar um grupo de homens pescadores a arrumar as redes. Eram corpos marcados pela vida do mar, tatuados e embravecidos, rostos agrestes e comunicavam entre si com um jeito de falar difícil para mim de entender. Enquanto os observava, escuto vozes femininas a aproximarem-se. Viro o rosto e vejo um grupo de raparigas muito jovens a caminhar em grupo. A imagem delas era o opostos do grupo de homens: muito jovens, coloridas, com vestidos curtos e festivos e rostos elegantemente maquilhados. Quando passam por mim, percebo que são raparigas trans. Elas sorriem-me e eu devolvo a delicadeza. Continuam a caminhar. Dirigem-se ao grupo de homens. Eu fico preocupada, desconcertada, pronta para as proteger se algo acontecesse. A minha cabeça, formatada, temeu. Mas o que aconteceu de seguida foi ainda mais desconcertante: as raparigas e os homens beijaram-se e riram-se entre si. Percebi que eram família, vizinhança, pessoas próximas entre si.

Esta imagem de mundos aparentemente opostos mas que se enlaçam num território limitado geograficamente, uma ilha, teve um enorme impacto sobre mim. Decidi logo: quero fazer um filme aqui e com estas pessoas. E assim foi. Seguiram-se anos de investigação no território, entrevistas, escrita de guião com as pessoas da ilha, candidaturas a financiamentos, castings, preparações, rodagens, etc. Uma viagem.

Os teus filmes têm uma forte relação com a estética documental. Quais foram os maiores desafios da narrativa ficcional, de modo a não perder a dimensão da realidade? 

Eu não consigo separar com tanta clareza o que é real ou ficção. Ambas as dimensões estão em relação permanente e ajudam-se a potenciar. Neste filme, que se constrói todo em redor de vidas reais, de actores reais, histórias reais e de relações reais, a ficção aparece como potenciadora do que na vida os actores não se permitem a viver, a dizer e, tantas vezes, não se permitem tantas vezes a sentir. A ficção é um lugar de protecção e de experimentação. É um lugar seguro para que as vidas sejam vividas sem limitações. A ficção é, paradoxalmente do que se possa imaginar, um lugar de liberdade.

Como realizadora sentes que o teu trabalho é mais de observação ou de direcção?

O olhar é dirigido por mim, pelo meu mundo interior. Ou seja, o meu trabalho são essas duas dimensões. E tantas mais. 

O que significa para ti o cinema queer? 

Preferia não definir um género, porque isso contraria as minhas convicções e aquilo que tento fazer nos meus filmes. Prefiro esbater géneros. Mas percebendo o que tentam perguntar, eu diria que é um cinema plural, em todas as dimensões. Não só na representatividade. Também no olhar e na forma.

Disseste que no processo da produção do filme "Lobo e Cão" surgiram dúvidas éticas, o que conduziu à primeira associação de apoio à população LGBTQIA+, chamada (A)MAR, nos Açores. Conta-nos um pouco mais. 

Foi durante o casting. Ao conversar com as pessoas candidatas fui-me apercebendo da dimensão de sofrimento que muitas vidas carregavam. E foi para mim muito claro que não poderia filmar a dor das pessoas sem contribuir, de alguma forma, para a melhoria das suas vidas. Um filme é uma contribuição indefinida. Precisava de ajuda profissional para apoio psicológico e social. Na altura, procurei por instituições na Região Autónoma dos Açores que trabalhassem especificamente com pessoas LGBT. Mas não havia. E por isso dei antes uma volta maior e convidei um grupo de pessoas da área da saúde e da área social para criarem comigo o primeiro centro de apoio à população LGBT e famílias dos Açores, chama-se (A)MAR – Açores pela Diversidade. O centro já existe há mais de 1 ano e tem feito um trabalho notável com a população e com as entidades muncipais e governamentais da região. Estou muito orgulhosa da equipa do (A) e muitíssimo agradecida pela ajuda que nos prestaram durante a produção do filme. 

Não quero fazer filmes com forças unilaterais. Acredito no poder transformador das relações e os filmes são o resultado desses encontros, do real à ficção. É sempre um retrato de um encontro.

Como se deu a escolha dos personagens entre a comunidade LGBTQIA+?

Foi através de um casting e da proximidade que as pessoas tinham com as personagens. Ou seja, procurei e escolhi as pessoas que se aproximavam, em termos de experiência de via e de empatia emocional, com as personagens que eu tinha escrito. Depois foi com elas que adaptei o guião às suas próprias vivências. Algumas pessoas optaram por usar um nome distinto da vida real, outras preferiram usar o seu próprio nome, pois não viam distinção entre si e a sua representação no filme, outras ainda foram introduzidas no filme porque, apesar de não coincidirem com nada do que eu tinha escrito, eram cometas inspiradores que não podiam ficar de fora. Foi tudo muito espontâneo e verdadeiro.

Achas que no cinema ainda existem assuntos considerados tabus? Quais são as tuas experiências neste contexto como realizadora? 

O cinema é um reflexo da vida. E a vida está cheia de tabus. A morte, a sexualidade, a diversidade em todas as dimensões (os corpos, as emoções, os percursos de vida, são apenas alguns exemplos). Eu diria que onde existe vida humana, existem tabus. Por isso estamos condenades a esta relação constante com os limites morais e sociais e a sua representação fará parte sempre do cinema. Agora o que é importante também é usar o cinema para transformar o nosso olhar e o nosso mundo interior. É um pas de deux de transformações, internas e externas.

Quais são as referências artísticas e as inspirações para os teus filmes?  

A vida e as pessoas. E a infinita capacidade de pensar e de sentir.

O que desejarias para o futuro no que diz respeito à diversidade dentro e fora da tua área profissional?

Diversidade de pessoas nos postos de liderança. Que a pluralidade seja a inspiração primeira de qualquer criança. Essa é uma das minhas utopias.

O que gostarias de transmitir às futuras realizadoras?

Eu, como o Jacques Rancière explica tão bem no seu livro “O Mestre Ignorante”, acredito muito pouco na pedagogia enquanto ensinamento e aprendizagem de duas figuras desiguais, ou seja, de alguém que sabe mais e outro alguém que sabe menos. Prefiro a imagem que ele evoca no livro: uma floresta e caminhos infinitos para seguir, não existe nenhum mais válido do que outro e qualquer um deles vai dar a uma clareira. O importante é avançar, começar a percorrer o caminho, e ir integrando o passo, o respirar interior, aquilo que se encontra e manter o olhar sempre curioso, evitando olhar para os caminhos vizinhos. Cada caminho tem a sua própria riqueza e ensinamentos. Esta postura interessada e espontânea, perante a vida e as coisas, criará vidas singulares. E é essa coragem para viver vidas singulares que poderá criar o tal mundo plural e diverso de que temos estado aqui a falar.

Que mensagem deixarias às companheiras da área do Cinema e Audiovisual?

Usem o vosso olhar e contem as vossas histórias singulares.

A autora é nossa associada: Kathrin Frank

Previous
Previous

CRISTÈLE ALVES MEIRA

Next
Next

ISABÉL ZUAA