Foto: © Gabriel Renault

Nome: Cristèle Alves Meira

Idade: 39 anos

Profissão: Realizadora

As duas obras mais significativas da carreira profissional: Alma Viva (2022) e Invisível Herói (2019)

Onde e em que função trabalhas? Qual é a tua situação profissional atual?

Trabalho em França e em Portugal. Sou realizadora e argumentista dos meus próprios projetos, mas também escrevo para outros autores de cinema. A minha atividade principal é escrever e ler argumentos de filmes.

Como começou a tua vida no cinema?

Comecei a fazer cinema de forma autodidata. A minha vontade de filmar começou muito cedo, quando comprei a minha primeira camara mini DV nos anos 2000. Filmava o meu bairro, cresci nos arredores de Paris, numa zona de muita emigração africana. Por exemplo, muitos trabalhadores malianos viviam perto da minha casa nuns prédios unicamente para homens malianos. Era uma forma de viajar sem sair de França. Também filmei, durante muitos anos, a minha família nas férias em Portugal ou nos momentos de reuniões familiares. Nasci em França, com pais portugueses, e regressávamos todos os anos para as férias em Portugal. Compreendi muito cedo, intuitivamente, que o cinema tinha o poder de parar o tempo, que me permitia imprimir rostos, momentos de vida, histórias para sempre. Escolher filmar alguém é experimentar o milagre de olhar para ele, seja ele um ator profissional ou não. Quando se olha para alguém, ele muda e revela-se, é realmente muito emocionante filmar alguém, foi exatamente isso que me fez querer fazer filmes. O meu primeiro filme foi um documentário em Cabo-Verde sobre a música e a morabeza, e tinha um jovem rapaz da ilha do Fogo como protagonista. Depois também fui para Angola filmar um retrato de um jovem nas margens da cidade de Luanda. Comecei a filmar com vontade de questionar as minhas origens portuguesas através da sua história colonial. O meu pai saiu de Portugal para fugir à guerra colonial, emigrou para França nos anos 70 como milhares de outros portugueses. Ao ir filmar em Cabo Verde e em Angola, é como se voltasse inconscientemente a algo não dito da história dos meus pais. Porque nunca foi fácil para o meu pai assumir essa emigração forçada. Os meus pais deixaram o país deles por causa do regime muito rígido de Salazar e as condições de vida extremamente precárias que existiam, não tiveram escolha. Trabalharam em França, durante mais de 40 anos, com a sensação de terem que provar cada vez o que valem. Era necessário fazer melhor que os franceses para existirem.

Como definirias o teu estilo enquanto realizadora?

Sou alguém muito humanista. Tenho imenso prazer em reunir uma equipa, em convencer as pessoas a acreditarem no meu próprio sonho e a entrar ao meu lado numa aventura coletiva. Sou muito cuidadosa para não estragar a relação das pessoas com quem trabalho, sou alguém que precisa de comunicar. Mas muitas vezes no trabalho, com a urgência das filmagens, os imprevistos ou as contrariedades posso ser alguém bastante direta. Sou uma realizadora que gosta de fazer tudo e de estar atenta ao trabalho de cada um. Quero sempre estar a parte de tudo, sou muito exigente e perfecionista, vou ver os detalhes porque tudo conta e quero ter a certeza que estamos todos a trabalhar no mesmo sentido. É muito difícil saber se as tuas palavras foram bem interpretadas, uma mesma frase pode ter um sentido diferente para pessoas diferentes e fazer um filme é conseguir transmitir a tua visão a toda uma equipa e fazer com que todos caminhemos na mesma direção. Confesso que sou autoritária quando é necessário ganhar respeito e impor limites, mas no fundo não gosto desta posição que acho um pouco arcaica. Até não gosto desta questão de hierarquia no cinema. Por exemplo, na rodagem de Alma Viva, insisti para que os figurantes pudessem comer com o resto da equipa artística, mas infelizmente não foi possível por razões práticas de espaço. Mas fiquei um pouco revoltada com isto porque cada pessoa que entra no filme vale a mesma coisa. A questão do poder e da afirmação deste poder incomoda-me. Preferiria não ter de exercer este poder para chegar aos meus objetivos. A sociedade impõe às mulheres serem fortes, guerreiras para conseguirem. Fiz a minha primeira longa como se fosse uma maratonista. Mas quando me vinham as lágrimas aos olhos por detrás do monitor não me escondia para chorar porque penso que temos de mudar este modo de representar-nos sempre valentes ou invencíveis. Mulheres ou homens, está na hora de assumirmos a nossa própria vulnerabilidade e a nossa sensibilidade, de termos coragem de não fingir ser outra pessoa, de sair do retrato que a sociedade quer que assumamos.

Que filmes, autoras e realizadoras te inspiram profissionalmente?

As influências variam de um projeto para outro. Mas para Alma Viva tive algumas mentoras ao meu lado como Lucrecia Martel e o seu filme O Pântano ou Alice Rohrwacher com O País das Maravilhas ou Corpo Celeste. O livro de Mona Chollet “Bruxa, o puder invicto das mulheres” permitiu-me assumir o assunto do meu filme sem medo. E digamos que Agnès Varda me ajudou a libertar-me dos preconceitos que tinha sobre a forma de falar em público. Adoro ouvi-la em entrevistas, ela é uma mulher que se assume perfeitamente, que não finge ser outra pessoa.

Hoje em dia, parece-te que ainda é um desafio ser uma mulher realizadora de cinema?

Claro que sim. Estamos num momento histórico da revolução feminista, com o movimento “me too” a organização das relações entre os homens e as mulheres na sociedade a transformar-se. Estamos a repensar e a redefinir as regras do nosso sistema antigo de dominantes/dominados. Mas a realidade é que no terreno ainda estamos a precisar de “quotas” para restabelecermos um equilíbrio na representação das mulheres e dos homens no cinema. No meu caso, ouvi muitas vezes homens dizer-me com um sorriso que o facto de ser mulher ajudava porque era tempo de recompensar as mulheres, que tinha de aproveitar esta fase onde os projetos de mulheres estão a ser postos no centro dos olhares como uma bandeira política. O problema desta fase (mesmo que seja necessária) é que quando ganhamos um prémio num festival, por exemplo, não sabemos se é graças ao nosso trabalho e à qualidade da nossa obra, ou se é para entrarmos nas “quotas”. É um momento um pouco sensível para as realizadoras. O desafio para o futuro é ultrapassar a questão do género. E pensar o mundo fora desta visão binária que nos limita.

O teu filme Alma Viva revisita paisagens e situações que não são novas no cinema português, mas apresenta-as a partir de um ponto de vista feminino. Era consciente esta opção por oferecer uma visão diferente, por exemplo, sobre Trás-os-Montes, a família, e a morte?

Não acredito nesta crença de que existem separações identitárias entre os homens e as mulheres. E não acredito que o facto de ser realizadora faz com que imponha um ponto de visto automaticamente feminino sobre o mundo. Algumas mulheres são masculinas e alguns homens são femininos. E quero acreditar que um homem poderia ter feito o meu filme, os homens também podem ser grandes “feministas”. Espero que o meu filho de 4 anos seja mais tarde um destes homens, é uma questão de educação, de mudar os preconceitos. O meu filme escolhe como protagonistas mulheres de todas as gerações, que têm coragem de se emanciparem de um meio social fechado. O meu ponto de vista é o de uma realizadora que está fascinada pelo poder e pelo mistério destas mulheres. Mas isso não tem nada a ver com o meu lado feminino. Acho que é um perigo atribuir certas emoções a mulheres e outras aos homens. O que é obvio é que Alma Viva é uma homenagem às mulheres poderosas, e que retrata a realidade de uma sociedade matriarcal na intimidade. Em casa, são elas que mandam, que têm o saber sobre o mundo visível e invisível. É a única forma de se libertarem da sociedade patriarcal que faz delas as únicas responsáveis por ter um filho bastardo, que não lhes permite uma sexualidade ilegítima fora do casamento (embora isto seja tolerado para os homens), que assume que criar os filhos sozinhas (sem a presença do pai) é mal visto, e faz delas mulheres de má fama. Estas injunções ainda fazem parte do nosso quotidiano, e é isso que Alma Viva vem denunciar.   

Como foram sendo construídas as personagens femininas do filme – por um lado, tão diferentes entre si, mas por outro, ligadas, de forma tão íntima, enquanto mulheres?

A “sororidade”, esta palavra muito ativa nas conversas feministas atuais, pode ajudar a esclarecer um pouco o que liga as mulheres no meu filme. Mesmo se confesso que nunca pensei nisto quando estava a construir as personagens. O que me inspirou esta relação íntima entre as mulheres é a minha vontade de mergulhar na intimidade de uma casa, de uma família, de permitir ao espetador espreitar pelo buraco da fechadura como faz a Salomé na primeira imagem do filme. O cinema permite isso, penetrarmos em mundos e universos que a realidade não nos permite ver. A câmara tem o poder de quebrar as paredes para observar a realidade e penetrar em lugares íntimos e tabus.

Alma Viva, que apresenta uma perspetiva sobre as mulheres muitas vezes utilizada de forma depreciativa – enquanto bruxas, feiticeiras, “feias, porcas e más”, – é um filme feminista?

Estas histórias de bruxas, de outras épocas, mas arcaicas, continuam a exaltar o nosso sentido da imaginação. Há um interesse renovado em rituais, magia e superstições. Digamos que mesmo que possam existir "bruxos", são principalmente mulheres a serem e terem sido acusadas de bruxaria. Claro que os tempos mudaram, já não se trata de as queimar (como foi o caso durante centenas de anos e que causou o genocídio de milhares de mulheres) mas continuamos a desconfiar delas, a apontar e criticar as mulheres que praticam magia, que são divorciadas ou solteiras, que não querem filhos. Continuam a intrigar, a gerar medo, mas também admiração. No tempo da minha avó, (sob o regime do Estado Novo) ser bruxa era sobretudo uma forma de ter poder numa sociedade onde os pobres e as mulheres não tinham direitos. Era uma forma de existir, de ser respeitada. A avó de Salomé preocupa-se em transmitir os seus conhecimentos ancestrais e secretos à neta, como uma forma de transmissão e de emancipação. O processo iniciático de Salomé começa com a morte de sua avó. Ela entra num território desconhecido e desenvolve a sua própria consciência do perigo para adquirir a sua autonomia. Como nos contos, ela confronta-se com eventos sobrenaturais e aventura-se numa zona escura, ela lida com o seu lado sombrio, movida por um desejo de vingança e morte. A aldeia acusa-a de ser o "Diabo" porque ela não se conforma com o modelo de menina gentil e razoável que a sociedade impõe às mulheres. Ela rompe a ordem estabelecida e liberta-se dos limites. Por isso é acusada de ser bruxa. A minha vontade com este filme era retratar a realidade desta figura (fora dos arquétipos tradicionais que se encontram nos livros para crianças ou nos filmes de terror) e que suscitam um fascínio por vezes mal interpretado. Alma Viva não é um filme de género. É um filme de terreno, quase antropológico, inspirado nas práticas reais de feitiçaria com as quais tive contacto próximo. Passei a minha infância ouvindo histórias de bruxaria e de maldições. Cresci com o ocultismo, com mulheres que são grandes místicas, que acreditam no poder das plantas e dos espíritos. A feitiçaria é realmente praticada nestas montanhas do Nordeste de Portugal, mas como é óbvio em muitas outras partes do mundo também. São rituais que são feitos em segredo e é tabu falar sobre eles. No início, tinha medo de abordar esse assunto no cinema, de torná-lo público. Não sabia se tinha o direito de fazê-lo. Porque sempre vi pessoas esconderem-se para falarem sobre isso. A magia fascina tanto quanto assusta. Quando nos envolvemos com a bruxaria, o perigo é ficar preso nela para sempre. É o que acontece com Salomé, que percebe que a magia gera forças perigosas. Ela está possuída por um demónio que ela ama, sua amada avó que a impele a restabelecer justiça. Ao fazer este filme, permito-me regressar a práticas e pensamentos primitivos. Conto crenças, ainda ativas hoje, que são transmitidas de geração em geração, mas que geralmente são contadas num ambiente privado e íntimo. Porque acredito que o cinema permite reinvestir o espaço através do maravilhoso e de responder a uma visão desencarnada do mundo.

Até que ponto filmes de realizadoras de outra era do cinema português, como Noémia Delgado, Manuela Cordeiro, Manuela Serra ou Margarida Gil, influenciaram o teu percurso, e o tom de Alma Viva em particular?

Vou ser sincera: infelizmente, não vi filmes de nenhumas delas. Vou já aproveitar esta conversa para o fazer em breve. Tenho tantas obras ainda para descobrir, é muito estimulante.

Tenho lido em várias entrevistas citações tuas em que descreves Alma Viva enquanto filme de mulheres. Isto vai para além do facto de ser realizado por uma mulher e de ter personagens femininas no centro da narrativa?

Alma Viva é um filme de mulheres simplesmente devido à questão fatual da narrativa que retrata a vida de mulheres de todas gerações para prestar homenagem à sua vitalidade e à sua força. E o facto de ser uma mulher a olhar para elas faz com que o projeto se torna feminista sem precisar erguer uma bandeira militante. O filme é feminista por natureza, no seu ADN, não por levar um discurso.

Sentes-te reconhecida na função que desempenhas?

Acho que sim. Mesmo se sinto ainda nalgumas relações de trabalho (minoritárias, ainda bem!) alguns preconceitos misóginos que vêm estragar o meu prazer de ser reconhecida. A organização das relações entre homens e mulheres está a mudar, mas ainda posso testemunhar situações muito desconfortáveis, de me sentir dominada pelo peso de homens que precisam afirmar um poder masculino.  Principalmente por parte de homens na casa dos cinquenta anos, que gostam de te falar como se fosses uma criança ou que te querem ensinar a vida. Ainda bem que nem todos não são assim! Trabalhei com homens nos cinquenta anos que se punham à altura do filme e da minha visão sem terem em conta que sou mulher, e dez anos mais nova. Não podemos generalizar e acho que o problema de algumas militantes feministas é generalizarem e porem os homens contra as mulheres. Quero acreditar que esta revolução que estamos a viver, a nova gramática que estamos a escrever para a sociedade do futuro, fará que estes homens sejam uma espécie em vias de extinção!

Dirias que tem havido mudanças positivas quanto à igualdade de género, diversidade e equidade no cinema e audiovisual? Em caso afirmativo, quais?

As “quotas” estão a impor a igualdade e permitem que a diversidade possa existir. Mas temos que ficar atentas porque também sentimos outras forças contrárias que continuam a querer que o poder esteja nas mãos dos mesmos dominadores. Também temos que mostrar como mulheres que somos exemplares e sensatas nas nossas posições. O facto de querermos mudar as regras suscita paixões de purificação, uma forma de apontar bodes expiatórios que é muito perigosa. Não podemos perder em credibilidade e temos que ter um comportamento exemplar para conseguirmos existir com equidade. Fico sempre muito orgulhosa de ver realizadoras portuguesas a ser premiadas em festivais internacionais (Leonor Teles, Cláudia Varejão, Catarina Vasconcelos, Salomé Lamas, Maureen Fazendeiro, Ana Maria Gomes, Sofia Bost, Mariana Gaivão, Catarina Ruivo, Ana Rocha De Sousa, Teresa Vilaverde, Margarida Cardoso, Marta Mateus...) Temos um bastião de realizadoras portuguesas que me faz sentir muito confiante para o futuro.

O que te parece faltar ao cinema e audiovisual português? 

Sinto falta de duas coisas muito concretas. A primeira é a forma como se organiza a paisagem das produtoras em Portugal. O sistema de pontos do ICA não facilita a emergência de novas produtoras no terreno. É um problema bastante grande porque faz com que um pequeno grupo de produtoras possuam todo o poder para financiar os filmes, e sentimos um certo engarrafamento quando é altura de apresentar os projetos nos concursos de apoio publico. A partilha do poder não se faz de forma equilibrada e as colaborações não se renovam, é uma situação um pouco viciada. O segundo assunto tem que ver com os direitos de autor, por exemplo, quando as obras de cinema estreiam na televisão. O sistema parece-me um pouco opaco. Teríamos que nos reunir entre autores do cinema para interrogar o sistema de partilha dos direitos audiovisuais, definindo uma percentagem mínima que revertesse para os autores da obra. A propriedade intelectual é um assunto muito sensível, que deveria ser mais discutido.

O peso da maternidade é algo muito forte para as mulheres. Que desafios enfrentas e como é a tua experiência de trabalho, sendo mãe?

Faço parte das mulheres que não querem ver a maternidade como um obstáculo. Até porque acho que é um preconceito perigoso que tranca as mulheres a função de mãe em casa. Para ser boa mãe não se pode trabalhar e para ter responsabilidades no trabalho não se pode ser mãe. Esta forma de pensar é estéril. É obvio que ser mãe é algo de muito forte que temos que conciliar com a nossa carreira profissional. Mas o homem também tem que lidar com essa responsabilidade de ser pai ao mesmo tempo que tem de ir trabalhar. A responsabilidade não pode sempre pesar nos ombros das mulheres. É um arquétipo do tempo passado que espero que as novas gerações transformem. Já estamos a pensar numa contraceção masculina para que os homens se responsabilizem também em relação à gestação. Em certos países pode ser o homem a tirar licença de paternidade para cuidar do bebé. No meu caso, partilho a responsabilidade dos meus filhos de forma equilibrada com o meu companheiro. E sempre consegui conciliar a minha criatividade com a minha vida de mãe. Tudo é uma questão de organização e de força de vontade.

Que mensagem deixarias às mulheres e dissidentes do cinema e audiovisual?

“Não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres” disse Simone de Beauvoir. Está tudo dito nesta frase. Escolher ser realizadora é antes de tudo querer defender as nossas ideias e a nossa visão do mundo para sair da sombra da educação que recebemos e do que a sociedade espera de nós. A sociedade quer fazer de nós seres frágeis, sensíveis, vulneráveis, histéricas, vagabundas, então seremos isto vezes mil para que o que nos limita seja a nossa força!

Questionário e revisão de texto: Mariana Liz

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