Foto: © Gabriel Renault

Nome: Vanessa Fernandes

Idade: 44 anos

Profissão: Realizadora e artista visual

Área de atividade: Cinema  / performance / artes visuais 

As duas obras mais significativas da carreira profissional:

Si Destinu (2015)

Mikambaru (2016)

Onde e em que função trabalhas? 

Vivo no Porto e trabalho um pouco por todo o lado. Sou realizadora, formadora e artista. Nos últimos anos tenho exposto o meu trabalho em galerias de arte, participado em residências artísticas e colaborado com artistas de outras áreas, desde a performance ao circo, da dança a projectos activistas. 

Tenho mais dois projectos em parceria com meu companheiro, Ivo Reis; Espectro Visível, mais relacionado com o cinema experimental, com a fusão de imagem real e digital, instalações multimedia, projectos sociais e formativos; e animatevisuals com videomapping ou projectos de dimensão mais gráfica e digital. 

Qual é a tua situação profissional actual?

Trabalho por conta própria e iniciei o Doutoramento em Estudos Fílmicos e da Imagem na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

Para ti, o que é importante na construção das tuas personagens femininas e nas histórias que escreves?

Tanto em “Si Destinu” como em “Mikambaru”, as personagens principais são duas jovens Guineenses imigrantes em Portugal, antes de mais, por serem retratos pouco esclarecidos e quase inexistentes no cinema português. Também o são porque tenho uma necessidade pessoal em dialogar sobre temas com que me identifico, onde habitam as minhas preocupações e que me conectam com a minha cultura e origem. 

Tentei retirar estas jovens de contextos típicos de estereótipos sociais. Principalmente, quis colocá-las a dialogarem entre si sobre os assuntos que lhes dizem respeito, sem serem arrastadas por algum tipo de falso salvamento. Em “Si Destinu”, Awa é uma menina a quem a família pretende praticar a excisão feminina, e em “Mikambaru”, Eva é vítima do seu passado colonial. Ambas estão inseridas num sistema que as persegue, aprisionadas pelos hábitos e vínculos das gerações anteriores e arrastadas para um passado que já não lhes faz sentido. Tenho uma necessidade enorme em questionar o espaço entre gerações e reflectir sobre os processos de uma possível mudança, as transições, e, principalmente, expor os lugares de reflexão. 

Também acabo por falar de mulheres cúmplices e coniventes com o sistema patriarcal e colonialista.Interessa-me pensar nos fantasmas e o saudosismo que vai para além das crenças, na fragilidade destes contrastes entre ser e ter, e revelar os lugares de pertença que derivam do privilégio. 

Numa visão feminista, em que direcção está a evoluir o mundo profissional do Cinema e Audiovisual? 

A produção audiovisual está a mudar e cada vez há mais realizadoras. Isso é maravilhoso, mas ainda estamos longe de ter igualdade de género no cinema. 

Essa evolução deve-se às quotas, aos movimentos feministas que têm persistido nas suas lutas, à criação de cinema independente e à digitalização que torna o processo de produção fílmica muito mais económico. Infelizmente, tudo isto é extremamente dependente dos contextos políticos, o que fragiliza o crescimento do cinema no feminino; precisamos de leis muito mais convincentes que protejam e estimulem, tanto as criadoras, como o público. 

Durante muito tempo não entendia a necessidade de se falar de feminismo no cinema ou nas artes - ingenuidade minha, pois sem isso vivemos de silêncio e à sombra de um sistema que já está demasiado sedimentado. O equilíbrio, só o conseguimos colectivamente e com persistência, é um processo de mudança e é fundamental estarmos conscientes disso para podermos construir algo para as próximas gerações.  

Contribuindo para gerar diálogo e comunidades, como pode o cinema ajudar a aumentar a visibilidade?

Sei que não há nada como ver um filme numa sala de cinema, mas é urgente se falar de cinema e se assistir cinema em escolas, espaços associativos, pontos de encontro, eventos e festivais: cinema por todo o lado e para todas as classes!

O cinema sensibiliza porque espelha, revela e expõe, faz-nos reflectir e acima de tudo, identificar. 

Há um aumento significativo de mostras e isso tem trazido diálogo e uma possibilidade enorme de encontro entre comunidades que nunca se vêem representadas. Gosto muito do que tem feito a Maíra Zenun com a Nega Filmes, a apresentar ciclos de cinema em bairros mais desfavorecidos. Com isto criam-se lugares de reflexão e debate. 

Tenho participado em alguns eventos, como por exemplo com a Djass Arte, MICAR, e outros organizados pela SOS Racismo. São momentos de partilha, muitas vezes emocionantes e afetivos, onde há uma fruição muito particular de se ver cinema para além do olhar. A sensação de justiça também vem ao de cima, são lugares onde conectamos e percebemos a importância dos direitos humanos.  

Os teus filmes circulam em torno de questões como racismo, mutilação genital feminina, cultura, herança, dança, raízes e a memória pessoal. Neste contexto, parece-me que se enquadra no conceito de ativismo cinematográfico. Concordas com isso? Como descreverias as tuas criações artísticas?

Sim, eu própria o nomeio dessa forma: o que faço no meu trabalho é ativismo. São temas que me atravessam, contêm histórias de família, pessoas próximas que me inspiram, e, principalmente, que me permitem continuar a luta dos meus pais que fizeram parte de movimentos independentistas na Guiné-Bissau. E claro, como guineense, vejo o colonialismo ou qualquer tipo de ocupação como uma força de poder a erradicar. 

Tenho vindo a trabalhar em contextos onde as minorias ainda se sentem reprimidas e afectadas pelo racismo e pela discriminação, as mulheres ainda são penalizadas pelo facto de serem mulheres, a comunidade LGBTIQ+ não é respeitada, nem representada, a violência para com a comunidade negra é persistente. 

O cinema é um diálogo constante com o modo como vemos o mundo, como o imaginamos. Para mim, produzir imagens é também pensar um lugar onde todos possam viver de forma justa. 

Vários dos teus filmes são campos férteis de experimentação e exploram diferentes línguas. Conta-nos um pouco mais sobre isso.

“Si destinu” e “Mikambaru” são as minhas primeiras curtas metragens e são produções independentes. Foram feitas com pouca experiência, uma equipa maravilhosa de amigos, pouco dinheiro e muitos sonhos. Realizei estes filmes com tudo o que tinha, ideias e ambições criativas. Queria fazer filmes onde se ouvisse o crioulo, aliás, os personagens falam crioulo de Guiné-Bissau, crioulo de Cabo Verde e português, o que é uma forma de unir os vários universos que me ocupam. Isso também acontece em relação às decisões estéticas… “experimentação”, será a palavra certa, tomei alguns riscos e tenho consciência disso. 

Desde “Tradição e imaginação”, a agora aos vídeo poemas “Mar inventado” (com voz e poema de Matamba Joaquim) e “Abro mais uma gaveta” (com voz e poema de Raquel Lima), estes lugares de experimentação já não são postos em causa, identifico-me com a videoarte e com a possibilidade de misturar a performance no meu trabalho fílmico.

Como descreverias a representatividade do cinema afrodescendente e negro em Portugal? Achas que houve mudanças positivas nas questões de igualdade, diversidade e equidade no Cinema e Audiovisual?

Há algum cinema afrodescendente com visibilidade em Portugal. Pocas Pascoal, Silas Tiny, Maíra Zenum e Welket Bungué são alguns dos realizadores em constante produção. Alguns obtiveram apoios do estado, outros são autores independentes, e a maior parte de nós produz por amor à camisola e por saber a importância do nosso trabalho. Cada vez há mais criadores negros e o cinema afrodescendente faz-se porque há uma urgência em ser feito, mas é precário, como já o é para muitos realizadores portugueses. O cinema não é uma prioridade em Portugal, e existem muitos estigmas que não nos deixam evoluir, principalmente no que diz respeito à gestão financeira na cultura: menos Big Brother, mais arte. 

Temos a MICAR, organizada pela SOS Racismo, que é um momento importante no que diz respeito à representatividade do cinema antirracista e de temas que nos dizem respeito. De resto, há uma resistência muito grande por parte das instituições, os temas de que falamos não interessam a um público generalista, ainda há muita negação quanto às questões da luta contra o racismo. Muitos portugueses não se sentem na obrigação de pensar sobre estas coisas, nem sequer têm interesse nestes temas. Quanto mais avançamos na luta contra a invisibilidade das minorias, mais ouvimos que há um foco demasiado grande no assunto, é um contra-senso. 

Como realizadora, que problemas enfrentas em termos de produção, financiamento e distribuição? Que condições poderiam ser melhoradas?

Os critérios de avaliação dos concursos de financiamento são muito exigentes, e as questões curriculares são um enorme problema. É extremamente desencorajador fazer cinema em Portugal. 

Penso que o cinema português se fecha em si mesmo a viver o estigma do elitismo. É feito por poucas pessoas e para poucas pessoas, está à mercê de um olhar crítico e condicionante, é um meio muito pequeno e muito competitivo.

Não faltam salas de cinema e condições de exibição, mas o cinema americano conquistou o público português, criando um fosso enorme na produção nacional. A televisão poderia ter um papel importante na divulgação do cinema português, e não o faz. A corrida para as audiências é um problema para a cultura, para o pensamento colectivo e para a nossa evolução de forma geral. Quanto mais público tivéssemos, mais cinema se produziria. Mas para isso é preciso educar e estimular o público. 

O que desejarias para o futuro no que diz respeito à igualdade entre homens e mulheres dentro e fora da tua área profissional? 

Desejo respeito mútuo, salários e possibilidades de emprego iguais, independentemente do género, da cor, raça ou estatuto social. Seria um equilíbrio para qualquer sociedade termos a possibilidade de viver em lugares altamente criativos e empáticos. A discriminação e a desigualdade são estruturas características de sociedades violentas e sedentas de poder. Penso que já vivemos desta forma durante demasiado tempo. É tempo para a mudança. 

Qual é o teu ponto de vista sobre o sexismo no campo profissional do Cinema e Audiovisual? Alguma vez sofreste algum episódio de discriminação ou assédio?

O meu contexto de trabalho é muito familiar, nunca sofri discriminação nem assédio nos projectos em que trabalho, porque se tratam de equipas pequenas, grupos de amigos, e, mesmo nos circuitos de exibição, estou sempre em presença de pessoas em luta pela justiça e pelos direitos humanos, ou seja, em  lugares seguros. Mas assédio… aquele convite duvidoso, sim, e nem chego por perto. Muitos homens em situação de poder têm tendência para “arrastar a asa”... é nojento e revela uma grande falta de maturidade. São homens que se aproveitam da sua posição para exibir a sua capacidade de possuir… aquele tom de “até te arranjo trabalho se…”, é horrível! 

Qual mensagem deixarias às mulheres do Cinema e Audiovisual?

É importante entendermos que há uma falha, que somos uma minoria e que não há igualdade de género na produção cinematográfica em Portugal. Como não tenho tido a possibilidade de acompanhar muitos festivais, perco a oportunidade de ver alguns filmes. Nesse sentido, parece-me que a MUTIM também pode ser um lugar para partilhar cinema, ou sabermos onde e como ter acesso ao cinema feito por mulheres. Temos de tentar fazer mais umas pelas outras. 

A autora é nossa associada: Kathrin Frank

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