Foto: © Rene Volfik

Nome: Regina Pessoa

Idade: 53

Profissão: Realizadora

As obras mais significativas da carreira profissional:


Quando te deste conta de que querias ser realizadora de animação? Fala-nos um pouco da tua trajectória

Conheci a animação por acaso. Sempre trabalhei para pagar os meus estudos e no início do meu 3º ano na Faculdade conheci algumas pessoas que trabalhavam no único estúdio de animação do Porto da altura. Viram os meus desenhos, gostaram e perguntaram: porque não vais ao estúdio? Estamos a começar uma nova curta de animação, e precisamos de pessoas para trabalhar. Eu fui e mostrei os meus desenhos ao diretor do estúdio, Abi Feijó. Ele gostou e disse: começas amanhã.

No início trabalhei nos filmes do Abi e mais tarde ele deu-me a oportunidade de poder desenvolver as minhas próprias ideias, o que era muito excitante. Mas a seguir ao primeiro entusiasmo de poder vir a desenvolver o meu próprio filme, percebi que não era assim tão simples: dei-me conta que a minha formação era visual, não tinha o hábito de escrever histórias e pouco sabia de cinema. E quanto mais eu tentava seguir as noções gerais de escrita de um argumento, mais desinteressante era o resultado, e mais bloqueada ficava. 

Então o Abi disse-me: não ligues a essas regras da escrita de um argumento, não te preocupes em escrever um texto segundo as normas, pensa apenas em algo que seja importante para ti. Se o que tens a dizer é realmente forte e importante para ti, irás dedicar-te de corpo e alma, e isso vai ver-se nas tuas imagens. É essa a motivação de que precisas para te ajudar a ultrapassar todos os problemas e etapas da execução do filme. E no final, as pessoas que virem o filme de alguma forma sentirão também essa força nas tuas imagens.

Esse foi, é e será sempre um dos ensinamentos mais úteis que aprendi: procurar no meu interior uma imagem, uma sensação ou emoção que seja realmente importante para mim. Foi assim que surgiu a ideia e a motivação para a fazer a minha primeira realização em animação que foi a curta metragem A Noite, que é sobre uma criança que tem medo do escuro, inspirada na minha infância e na relação com a minha mãe. E continuei a seguir esse ensinamento do Abi para todos os projetos seguintes.

Podes descrever o teu processo criativo? Tens uma forma particular de trabalhar?

Sou frequentemente convidada para falar sobre o meu trabalho, o que me obrigou a refletir sobre o meu processo criativo, e isso levou-me à consciência que necessito de passar por várias etapas. A ideia ou intenção pode começar por uma imagem que me inspira ou um som; por uma memória; pode ser sugerida por alguém; por algo de natureza pessoal.

A animação é quase sempre um trabalho longo, extenuante, passam-se por momentos de frustração e surgirão dúvidas e vontade de desistir. Assim, pergunto-me pela motivação, para que nunca se perca de vista o objectivo final.

A pesquisa documental também é essencial, e passa por procurar autores, documentos, textos, ou imagens, ou até inspiração noutras formas de expressão artística que ajudem-me a documentar, desenvolver e consolidar a ideia. Rodear o meu espaço de trabalho com essas imagens, objectos e coisas que me inspiram, cria uma zona de conforto e ajuda-me no meu processo. 

Demora pelo menos 3 dias até que apareça algum desenho interessante. Pode ser algo tosco mas pode haver aí um detalhe, um traço, uma mancha que me dá uma pista para desenvolver outra imagem. Depois experimento com diferentes materiais, suportes, formas de expressão, cores, iluminação. Logo aparece o caminho gráfico a adotar para o projeto. Este momento é muito importante, porque a partir daqui começa a execução do projeto. 

O que é que te inspira?

A partir do meu primeiro filme, ao tentar escapar da dificuldade que era a minha falta de formação em cinema e em argumento, a forma que encontrei para conseguir criar histórias foi falar de temas simples a partir das minhas memórias e vivências pessoais. Medos, a solidão, a diferença são pequenas coisas que parecem simples e sem importância, mas com as quais eu me sentia mais à vontade porque eram despretensiosas e porque eu as conhecia bem. Isso dava-me mais coragem para abordar esse meio completamente desconhecido para mim que era o cinema: pelo menos eu sabia do que estava a falar.

Depois, quando esse filme ficou pronto e começou a circular, fiquei surpreendida por o filme ser bastante bem acolhido. E dei-me conta que era possível criar as minhas histórias. Não são os grandes contos fantásticos que me fascinam, mas sim os pequenos episódios do quotidiano. 

Nos filmes seguintes continuei a explorar essa via, inspirando-me na minha própria história, na minha infância e nas pessoas que me rodeavam.

Que métodos de animação gostas de utilizar e porquê?

A minha formação foi em Artes Visuais/Pintura, onde nos era incutido o cuidado na composição da imagem, das técnicas, das texturas orgânicas, o poder do claro/escuro. Enfim, o gosto artístico marcado pela História de Arte.

Quando conheci a Animação, era essa a bagagem que possuía e apliquei-a no meu primeiro filme A Noite. Eu tinha consciência de que se tratava de uma história muito simples, que só poderia ganhar vida se eu fosse capaz de criar o visual, o drama e tratamento de som certos. Assim, usando gravura em placas de gesso, uma técnica completamente louca para se fazer em Animação, esforcei-me por transmitir o melhor que sabia em cada desenho a emoção que procurava, dando um grande ênfase à expressão dos personagens, ao jogo de luz e sombras, e criando assim, através de  uma textura muito orgânica e uma atmosfera monocromática, um ambiente forte e interessante.

Gostei muito do resultado visual e nos meus filmes seguintes continuei a explorar e desenvolver técnicas de gravura animada, usando meios e suportes diferentes à medida que a tecnologia foi evoluindo. Por vezes gracejo e digo que as minhas técnicas evoluíram “da pedra ao pixel”, uma vez que o meu primeiro filme foi executado literalmente em Gravura Animada sobre Pedra (gesso), e passei depois por fases em que utilizei outros suportes mais leves como Gravura Animada sobre Papel. Mais recentemente comecei a introduzir também as novas tecnologias (Pixel).

O meu estilo pessoal foi sendo  através das diferentes ferramentas que experimentei, e esse trajecto permitiu-me compreender como é importante definir a nossa própria linguagem pessoal. Quaisquer que sejam os meios utilizados, estes devem estar ao serviço do autor e não o contrário.

Qual é a parte mais gratificante e também a parte mais desafiante de ser uma realizadora de animação?

Realizar um filme é sobretudo a possibilidade de dar continuidade a uma aprendizagem que nunca se esgota. A cada filme que começo, coloco-me a mim própria pequenos desafios pessoais. Tento sempre não repetir fórmulas e tentar algo novo, e volto sempre a sentir o arrepio no estômago e a pergunta na cabeça: Será que vou conseguir? E essa incerteza que, se for equilibrada de forma a não bloquear a criatividade, é o que faz o trabalho progredir, evoluir, ir mais longe.

A realização em cinema de animação é um território de cruzamento de diversas formas de arte que engloba o cinema, a escrita, a música e o som, ou o desenho. É um campo extremamente privilegiado para uma evolução contínua a nível artístico e pessoal.

Que conselhos darias às mulheres que querem ser realizadoras de animação?

O conselho que posso dar a qualquer pessoa que queira realizar é o que pergunto a mim própria quando começo um novo projecto: o que quero dizer e porque sinto que tenho que fazer este projecto. Segundo a minha teoria, é a tentativa de resposta a esta questão que me vai dar a motivação que é a força motriz essencial para atravessarmos todo o processo. Depois vem a última pergunta: como vou fazer o filme (ou seja, que forma lhe vou dar, como vai ser a imagem, as cores, o som, a música)?

Sou mulher mas sinto-me antes de tudo um ser humano e sempre tentei que fosse esse o guia da minha conduta antes da noção de género: honestidade intelectual, generosidade com os outros (a equipa), e humildade com os resultados. O centro das atenções deve ser o trabalho, e não o ego do realizador.

Nas tuas histórias, exploras temas autobiográficos que desenvolves a partir das tuas memórias de infância, por exemplo, sobre a tua relação com o teu tio e a tua mãe. Podes falar-nos mais sobre isso?

A forma que encontrei de contar histórias foi a de falar dos pequenos eventos comuns, dos assuntos que conheço melhor: os meus. Vivi até aos 17 anos numa pequena aldeia num Portugal rural e atrasado saído da ditadura, no seio de uma família muito pobre, como eram a maioria das famílias da altura. Esse curto período de infância e adolescência foi marcado por experiências tão fortes para mim que determinaram os conteúdos e direção da carreira artística que viria a ter. A minha família era disfuncional e com casos de doença mental, como a minha mãe que tinha esquizofrenia, ou como o seu irmão, o Tio Tomás, que tinha “as suas manias”. Inspiro-me nas memórias desse período e abordo nos meus filmes esse tipo de personagens atípicas, porque foram esses os modelos de adulto e de mundo que tive.

Também foi assim que acabei por encontrar a minha própria motivação: a de prestar homenagem e um tributo às pessoas anónimas que conheci. As situações que represento baseiam-se em pequenos dramas das suas vidas, é a minha forma de “escrever”, quer a minha própria história, quer a deles. Sinto que eles não puderam ter voz e serão esquecidos se eu não falar deles.

Ainda assim, tenho o cuidado que os meus filmes não se esgotem num simples visionamento, e tento sempre usar vários níveis de conteúdo e interpretação, referências subtis ou pistas simbólicas que espero que se vão revelando ao espectador a cada visionamento. Os meus filmes são muitas vezes estudados para reflexão de temas como “os medos na infância”, “o papel da diferença na sociedade” ou, “a herança que uma geração deixa à seguinte”. O 20 anos depois os meus filmes ainda são extremamente vistos.


História Trágica com Final Feliz é muito provavelmente o filme português mais premiado de sempre, e o teu nome encontra-se em terceiro lugar na lista dos 50 melhores animadores do mundo. Também recebeste o Prémio Bárbara Virgínia, destinado às realizadoras com maior destaque na história do cinema português. Que importância tem este prémio para ti? 

Receber prémios é estimulante, sobretudo quando estamos a começar a carreira. A nível pessoal acabam sempre por ser sentidos lá no fundo como uma validação de que o nosso filme afinal vale a pena.

O prémio Bárbara Virgínia teve uma grande importância para mim por duas razões principais. Primeiro, por causa do meu percurso pessoal, e uma vez que a minha origem é no “Portugal profundo”, longe dos grandes centros urbanos e de cultura. Segundo, porque me  dedico a um formato (a curta-metragem) e a uma técnica do cinema (a animação) bastante marginais, muitas vezes vistos como estando no fundo  da hierarquia do cinema.

Toda a minha vida tenho lutado pelo reconhecimento da curta-metragem de autor em animação com paciência, perseverança e estratégia: conheço o meu país, sei que se tivesse ficado apenas por cá à espera que reconhecessem o meu trabalho, provavelmente isso nunca iria acontecer. 

Comecei a fazer os meus filmes em coprodução com países onde o cinema de animação já tinha há muito alcançado grande respeito. Vivi e trabalhei longos períodos nesses países, o que me permitiu aprender imenso sobre a forma de trabalhar e de divulgar este arte. O meu trabalho ganhou outra dimensão, ficou mais arejado e profissional e uma vez os filmes prontos tiveram grande aceitação e reconhecimento nos principais festivais e eventos internacionais. 

Com distinções de nomes sonantes como o Festival de Annecy, European Film Awards, Oscars’ Short-list, ou Annie Awards, o público em Portugal começou a aperceber-se que afinal talvez haja algum interesse neste trabalho. Foi um longo percurso e ao receber o Prémio Bárbara Virgínia senti a sua extrema importância não apenas como realizadora mulher, mas também como se o cinema de animação tivesse sido finalmente reconhecido pelo Cinema Português.

Achas que as mulheres que contribuem para o cinema português são suficientemente valorizadas? 

Há muitas hierarquias no cinema em geral, não apenas no cinema português.Apesar de começarem a ser reconhecidas algumas realizadoras femininas, tenho a impressão que o papel da mulher nesse meio ainda se resume bastante à sua imagem projectada no écran, imagem essa que corresponde ainda muito à fantasia masculina da “Mulher”.

No nicho do Cinema onde trabalho, a curta de animação de autor, existem bastante mais mulheres realizadoras que no cinema de imagem real. Diria que a proporção da presença feminina nos distintos postos de trabalho é próxima dos 50%.

No entanto, na indústria da animação de séries e longas-metragens, por exemplo, onde há grandes orçamentos e lucros envolvidos, ou em nomeações importantes como os Óscares, Annie Awards, e European Film Awards, a presença de mulheres baixa drasticamente. Ainda há muito caminho a percorrer.

Os teus filmes são feitos principalmente com co-produções, também porque é difícil financiar filmes de animação em Portugal, incluindo através de apoios do ICA. Que mudanças gostarias de ver no país para facilitar o financiamento deste tipo de trabalho? 

Comecei esta estratégia de coprodução com outros países porque na altura o meu projecto para o filme História Trágica com Final Feliz foi recusado para apoio pelo júri do então ICAM.

Assim, para conseguir fazer o filme foi necessário procurar apoios financeiros da França, do Canadá e uma pré-compra do Canal ARTE - o projeto teve apoio do Português no ano seguinte. 

Não era fácil nessa altura.No entanto, com o tempo as condições foram mudando. E hoje temos já uma boa comunidade de cinema de animação, que a cada geração tem contribuído para o apuramento, reconhecimento e afirmação de um cinema de animação de assinatura portuguesa.

Os incentivos do ICA têm sido essenciais para o desenvolvimento e afinação de uma identidade artística nacional, cujos resultados começamos agora a ver cada vez mais encorajadores. Esses incentivos serão mais importantes que nunca para que esta vitalidade a que se assiste neste momento se possa desenvolver e afirmar cada vez mais.

Mas a tutela - ICA e Ministério da Cultura - depende dos poderes políticos que gerem o país Basta vir uma política ignorante e insensível à cultura para que todo este trabalho regrida décadas.

Poderias nomear dois dos teus filmes favoritos relacionados com questões femininas? 

Como a curta de animação é o meu formato de eleição, e ainda é muito pouco conhecido do público em geral, nomeio 2 curtas de animação realizadas por mulheres

When the day brakes (Amanda & Wendy Forbis, 1999): é para mim uma obra prima, um dos meus filmes favoritos de todos os tempos e de todos os géneros  É uma curta-metragem de uma beleza arrebatadora, um filme divertido e extremamente profundo no seu conteúdo, levando o espectador a refletir sobre a natureza humana, as suas relações, o individual e o coletivo e como fazemos parte de um cosmos de vidas interconectadas. Estas  mesmas realizadoras estão nomeadas para os Oscares pela 4ª vez este ano (4ª!!!), para melhor Curta Metragem de Animação. Pergunto-me se, se fossem homens, não teriam ganho logo à primeira.

A minha segunda proposta é Un Jour (Marie Paccou, 1998): é um filme de apenas cinco minutos, lindíssimo, curto e eficaz, com uma estética extremamente forte. Aborda o tema intimista da perda com a precisão, simplicidade e sensibilidade com que só uma mulher poderia descrever.

Ver também a curta-metragem de Regina Pessoa: História Trágica Com Final Feliz

A autora é nossa associada: Kathrin Frank

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