Nome: Alice Rohrwacher

Idade: 42 anos

Profissão: Realizadora

As duas obras mais significativas da tua carreira profissional:

É muito difícil… Quando era pequena, perguntava à minha mãe: “de quem gostas mais, de mim ou da minha irmã?” E ela respondia: “de uma mais que outra”. Mas, claro, sem dizer qual! Também não consigo escolher, mas em relação a Feliz como Lázaro (2018) tenho uma sensação muito forte. Acredito muito neste filme. Não porque o fiz, mas apesar de ter sido feito por mim. Acredito muito no protagonista, nesta personagem, que continua presente na minha cabeça. Não é que goste mais deste filme do que de todos os outros, porque todos têm coisas positivas e limites. Os filmes devem ser livres. Eu não gosto de filmes perfeitos, não me interessam filmes perfeitos. Mas em Lázaro, esta personagem é muito forte, e a mais forte do meu cinema.

Entre 2004 e 2005, estudaste em Portugal. Através de um intercâmbio do programa Erasmus estudaste Grego na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Durante esse período, fizeste um curso de cinema na Videoteca Municipal de Lisboa. Como surgiu essa oportunidade? Podes contar-nos mais coisas sobre essa experiência?

Eu já tinha co-realizado um documentário em Itália. Na altura não estava muito interessada em fazer cinema. Esse documentário, que era sobre uma família, foi um pretexto para viver com essa família. Agora que passaram mais de vinte anos, vejo que foi muito importante ter feito esse filme, até para essa família, para quem se tornou num testemunho fundamental. Vê-se assim o poder que o cinema pode ter no tempo, mesmo quando um filme não é perfeito. Vi um panfleto do curso da Videoteca, penso que na universidade, e inscrevi-me. Na verdade, foi a única escola onde fui aceite, e foi muito bom. Era um curso de quatro meses, com uma turma pequena, com cerca de catorze pessoas (incluindo a Joana Pimenta). A Margarida Cardoso coordenava, e havia outros professores. Dessa experiência, resultou um outro filme documental, que fiz com a Alexandra Loureiro. Era um documentário sobre o Tejo Bar. Mas sobre o Tejo Bar antes de ter sido descoberto pela Madonna!

Os filmes devem ser livres. Eu não gosto de filmes perfeitos, não me interessam filmes perfeitos.

Esse é o filme Vila Morena?

É isso mesmo. É um filme que eu nem sabia que ainda existia, mas que este ano foi exibido pela Festa do Cinema Italiano. E apesar de este filme ser muito naïve, muito ingénuo, agora é um filme importante para dar a ver como a história de Alfama e do Tejo Bar mudou. Desde então, a comunidade do centro de Lisboa mudou muito. O filme tem vinte anos e conta uma história de uma outra época.

Graças a essa experiência, tiveste oportunidade de conhecer o cinema português?

Acabei por passar quase dois anos em Portugal. Depois de fazer este curso, compreendi que o meu trabalho passaria por refletir sobre as imagens. Montagem, realização, escrita… ainda não sabia bem o que queria fazer, mas apercebi-me que as imagens eram uma coisa a proteger, sobretudo numa época em que eram muito utilizadas para vender coisas. Fiquei em Lisboa para trabalhar como assistente da Luciana Fina, na montagem de alguns dos seus trabalhos, e acabei por conhecer algum cinema português. Fui ao IndieLisboa, que foi um festival que me abriu muito a cabeça. Fui à incrível Cinemateca, que tem uma programação mesmo incrível, numa sala incrível. Acho até que a experiência mais forte que tive de cinema foi em Lisboa, porque nas outras cidades onde tinha vivido antes não tinha estas possibilidades. Gostei muito do cinema que vi na altura. Mas vi muitas coisas diferentes e seria difícil nomear alguém. 

Esse primeiro curso era de documentário, e sendo a fronteira entre ficção e documentário obviamente muito difusa, ao ver os teus filmes, parece estranho pensar que o teu cinema se desenvolve a partir daí. Como se liga a atenção ao real com o teu trabalho?

Tudo o que faço tem raízes na realidade. Mesmo o que pode parecer absurdo, vindo da imaginação, chega da realidade, da observação, da sensação que é possível dar um corpo e uma imagem a algo que não se pode ver. Este invisível está na realidade, são as relações entre as coisas, e entre as pessoas. Nesse sentido, não vejo uma diferença significativa entre documentário e ficção. Aliás, posso contar uma história engraçada a propósito disto. Quando fiz O País das Maravilhas (2014) e chegámos à fase da montagem, o filme parecia um desastre. Na montagem há sempre momentos dramáticos, e isso também aconteceu com este filme. Mas a sensação mais forte que me ficou desta experiência foi ver o montador, todas as manhãs quando começávamos, e ligava o computador, cumprimentar as personagens do filme pelos nomes, dizer-lhes “bom dia”, e, ao final do dia, ao desligar o computador, dizer “boa noite”, despedir-se. Os dois, o montador e eu, mesmo não sabendo como iria ficar o filme, sentimos nessa altura que lá dentro já moravam pessoas. Havia vida. E às vezes parece-me, quando fazemos um filme, que é precisamente isso: construímos um mundo falso, e depois vamos fazer um documentário sobre esse mundo.

Os teus filmes têm uma linguagem muito própria, e ao mesmo tempo chegam a muitas pessoas, até porque, felizmente, têm tido bastante sucesso. Foi difícil defender essa linguagem própria?

Quando eu escrevi o meu primeiro filme, pedi a um produtor que lesse o guião. Eu era muito inexperiente, e disse-lhe que estava preocupada, porque não sabia se iria haver público para esse filme. Ele disse-me uma coisa que mudou para sempre a minha forma de pensar e de estar no cinema. Disse: “mas quem pensas que és? Pensas ser melhor que o público? Mais inteligente? Tu és uma pessoa muito normal. E se fizeres uma coisa de que gostes, como és uma pessoa banal, muitas pessoas vão gostar”. Isto mudou totalmente a minha perspectiva. Penso muitas vezes nestas palavras. 

Parece ter sido um conselho muito importante. Que conselhos darias às mulheres trabalhadoras do cinema e audiovisual que estejam a começar?

“Quem pensas que és?” Somos todas muito banais… e isso é bom! Ser coerentes connosco mesmas é mais produtivo que ir procurar os supostos gostos do público.

Nos teus filmes há uma atenção muito grande à imagem. Como é a tua relação com a diretora de fotografia Hélène Louvart?

É uma relação que se explica pensando-se em dois corpos e uma alma. Somos assim; nem temos de dizer nada. O maior problema em trabalhar com esta diretora de fotografia é encontrar atores que possam filmar nas mesmas datas que ela. Foi, aliás, assim que acabámos por trabalhar com o Josh O’Connor em A Quimera (2023). Eu imaginava ao princípio um ator mais velho, mas ninguém tinha disponibilidade nas mesmas datas que a Hélène. Alguns atores diziam-nos para procurar outra diretora de fotografia, mas trabalhar com a Hélène, para mim, é uma necessidade. Às vezes acontece ter uma outra pessoa para cenas adicionais, como aconteceu em Corpo Celeste (2011). Trabalhei com outros diretores de fotografia incríveis, incluindo em curtas-metragens e documentários, mas com a Hélène tenho uma relação mais filosófica. É uma relação de trabalho espiritual.

Como foram desenhadas as personagens principais de A Quimera?

Estava tudo escrito antes, mas foi tudo habitado pelos atores. É como uma casa: já está construída, mas as pessoas que lá vivem, mudam o seu destino.

Josh O’Connor escreveu-te várias cartas (dirigidas simplesmente a Alice Rohrwacher, Umbria, Italia) até conseguir entrar em contacto contigo...

É verdade. Eu não respondi, porque não encontrei as cartas. Na verdade, chegaram depois a casa dos meus pais...

Conhecemos a história da entrada de Josh O’Connor em A Quimera. Como foi com a atriz brasileira, Carol Duarte?

Eu tinha uma ideia de feminilidade muito específica que queria explorar. Fiz muitos castings, mas não encontrava a atriz. Por fim, encontrei a Carol, que conheci via Skype. Em dois minutos percebi que tinha de ser ela. Nem chegou a fazer um casting, foi só uma conversa. Ela cantou uma canção, mas muito mal.

Em A Quimera, a personagem Italia transmite uma sensação quase física de liberdade. É como se flutuasse num universo à parte, e isto acontece com várias personagens femininas nos teus filmes. Podes falar-nos sobre isto?

Italia (em A Quimera) está inspirada no funâmbulo. O funâmbulo não tem de fazer nada de extraordinário, apenas andar. Mas a cada passo que dá, pode morrer. Aquilo que nos deixa espantados no funâmbulo é ver o gesto normal de andar tornado numa coisa extraordinária. Foi isso que lhe disse: não tens de fazer nada, mas esse nada tem de ser extraordinário, arriscado. Cantar, andar, tudo o que fazes pode ser um desastre. E quanto mais perto do desastre estás, melhor se forma a personagem. Gosto da ideia de que um funâmbulo pode criar uma sociedade nova.

Não é possível acabar com o mundo patriarcal sem imaginar uma masculinidade diferente.

Que mulheres do cinema te inspiraram ou inspiram?

Não gosto muito de listas. Mas para a criação de A Quimera, por exemplo, foi muito importante o filme Sem Eira Nem Beira de Agnès Varda (1985). Eu gosto muito da Agnès, tive a oportunidade de a conhecer e de passar bastante tempo com ela. Acho que A Quimera tem uma ligação muito forte com Sem Eira Nem Beira. Também Sem Eira Nem Beira é sobre uma personagem que tenta afastar os outros, uma personagem que não quer ser amada, como Arthur em A Quimera. A pergunta neste filme de Varda, como em A Quimera, é “podemos amar quem não quer ser amado?”. Para mim, sim. Mas é uma questão muito difícil. 

Dirias que tem havido mudanças positivas quanto à igualdade de género, diversidade e equidade no cinema e audiovisual? 

Atualmente, o problema é: se ganhas um prémio, é porque és mulher; se não ganhas, é porque és mulher. Eu acho que tenho muita sorte, porque devido ao facto de ser mulher, muitas pessoas me perguntaram como era ser uma mulher realizadora. E por causa disso tive a oportunidade de refletir sobre esta questão. Isto não aconteceu aos meus colegas homens, porque ninguém lhes pergunta como é ser um homem realizador. Os homens não têm tido a possibilidade de refletir sobre a ideia de masculinidade que querem para o futuro. Eu sim, tive muitas oportunidades de refletir sobre a ideia de feminilidade que tenho e que gostaria de ver desenvolvida no futuro. Claro que a situação é dramática. Em Itália, por exemplo, há ainda um longo caminho a percorrer. Mesmo quando uma mulher elogia o trabalho de outra, a visão jornalística é: “como é bonita a sororidade!” E isto é um discurso cínico...

E como se combate esse cinismo, e a desigualdade profunda que ainda existe?

Primeiro, promovendo uma discussão séria com todos. Não é possível acabar com o mundo patriarcal sem imaginar uma masculinidade diferente. Depois, acho que nós, as mulheres, deveríamos tomar o poder durante 2000 anos, em vez de nos preocuparmos com a paridade. Claro que isto tem um lado de brincadeira, mas no essencial trata-se de evidenciar a nossa história. Foi uma história longa, muito difícil, muito feia, mas também muito boa. Nós mulheres devemos ser destemidas, e orgulhosas da nossa história. Sabemos fazer tecidos, sabemos fazer filhos... tantas coisas que nos permitem contar histórias de outra maneira! Eu acredito que existe um olhar feminino. E imagino que um dia este debate se passe apenas entre pessoas velhinhas. Tenho muita fé nas pessoas mais jovens, que são muito mais livres. Quando era pequena, não pude ter amigos rapazes – fiquei a perder, e eles também. É mau para todos que os homens estejam presos nessa masculinidade. Como os tombaroli, sozinhos no café, sem saber que fazer. Entretanto, as mulheres, sim, fizeram qualquer coisa.

A entrevista foi feita pela nossa associada: Mariana Liz

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