Nome: Laura Carreira

Idade: 30

Profissão: escritora e realizadora.

As duas obras mais significativas da tua carreira profissional: On Falling, The Shift.

Antes de mais parabéns pelos prémios e nomeações que o “On Falling” tem vindo a conquistar. Podes contar-nos em que funções trabalhas e qual é a tua situação profissional atual?

Trabalho como escritora e realizadora, o ‘On Falling’ foi o primeiro projecto que me permitiu trabalhar como realizadora a tempo inteiro sem ter de ter outros trabalhos. De momento, ainda estou a trabalhar na promoção do filme e estou a começar a ter tempo para escrever (e a ter mesmo de escrever, que preciso de um salário não tarda nada…). 

Com que idade começaste a desenvolver a tua consciência política? E o cinema teve alguma coisa a ver com isso?

Eu acho que já vem de pequenina, cresci a ouvir Zeca Afonso e José Mário Branco em casa, é a prova de que os meu pais têm bom gosto musical. A minha adolescência foi durante os anos da troika, por isso participei em protestos anti-austeridade e nos movimentos estudantis durante essa altura. Quase de certeza que essa consciência política influenciou a minha relação com o cinema, mas acho que só percebi isso mais tarde. Foi quando me mudei para a Escócia e comecei a estudar cinema na universidade, e ao mesmo tempo comecei a trabalhar - foi nesse processo de me tornar adulta que comecei a ver a vida e o cinema de forma completamente diferente, e a sentir o quanto da minha vida era agora ditada pela necessidade de trabalhar, algo que muito cinema evita retratar.

No teu trabalho exploras de forma recorrente questões como classe social, relações laborais e distribuição de riqueza. Consideras as questões de género e etnia igualmente relevantes e alguma vez consideraste trabalhá-las no grande écran?

Acho que quando se trabalha temas como a precariedade ou desigualdade económica e social, é impossível ignorar como estas dinâmicas afetam de forma desproporcional mulheres, imigrantes e pessoas racializadas. Estes aspectos de exploração estão todos interligados. Quando comecei a fazer investigação para a escrita do ‘On Falling’ imediatamente me apercebi de que muitos dos colectores eram trabalhadores imigrantes, e isso influenciou a decisão de escrever a protagonista como uma trabalhadora imigrante. Fez logo sentido como resultado deste processo de investigação, mas também porque podia combinar esse processo com a reflexão sobre os meus primeiros anos na Escócia como imigrante. 

Quando mostras a violência que o sistema económico capitalista produz sobre um corpo, neste caso o de Aurora, estás a mostrar também, por exclusão de partes, a falta que faz a esse corpo o cuidado, o tempo livre, o riso, a brincadeira, o carinho. Estes conceitos são centrais a muitas correntes atuais de feminismo anticapitalista. Revês-te nesta análise?

Sim, nesse sentido acho que a perspectiva feminista mostra também como tanto do  trabalho doméstico e de cuidado é desvalorizado por não ser remunerado. Para mim, há muito na vida para além do trabalho assalariado, mas vivemos de uma forma que esse trabalho é visto como algo que se sobrepõe a tudo e todos, a todos os ritmos da vida…

Quando olhamos com alguma objectividade para como vivemos, toda a nossa vida gira à volta do trabalho. O resto existe nas margens desse tempo. Acho que por isso é pouco surpreendente que nos falte tanto, estamos sem tempo para o que é importante. 

Em Portugal a realização de longas-metragens de ficção é maioritariamente dominada por nomes masculinos. Como tem sido a tua experiência enquanto realizadora e como vês o percurso das tuas colegas realizadoras, quando comparado com o dos seus colegas masculinos?

Eu cresci em Portugal, só a ouvir nomes de realizadores masculinos (portugueses e internacionais), nas minhas curtas notei várias vezes a confusão de figurantes que, quando eram apresentados a mim, não conseguiam esconder o choque de eu ser uma mulher… Tive uma experiência de discriminação de género muito má logo no inicio da minha carreira. Mas mesmo recentemente notei também ângulos estranhos em notícias que saíram sobre o filme em Portugal. A verdade é que as mulheres continuam mal representadas na área da realização, e por isso sinto que estou a desenvolver uma carreira numa área em que as estatísticas não são promissoras. Recentemente saiu um estudo que calculava que, a este ritmo, só em 2080 haverá paridade entre homens e mulheres na indústria do cinema…

Mas, nos últimos anos, muitos dos meus filmes favoritos foram de realizadoras, no ano passado a curta linda “Corpos Cintilantes” da Inês Teixeira, este ano o filme “Hanami” da Denise Fernandes, que tive o prazer de ver no Festival de Cinema de Londres, um filme maravilhoso que tem ganho prémios por todo mundo. Nos últimos anos também descobri o filme perdido da Manuela Serra, ‘O Movimento das Coisas’, e passou imediatamente a ser um dos meus filmes Portugueses favoritos. Por isso, acho que as mudanças estão a acontecer, mesmo que devagarinho. O movimento #metoo por exemplo, se pensarmos que há apenas uma década atrás os testemunhos de mulheres sobre assédios sexuais não eram levados a sério… Eu felizmente já entrei na indústria com a possibilidade de poder falar e de ser ouvida, o que é uma diferença gigante. 

Tens um olhar sobre o mundo do trabalho que, para além de observacional não deixa de ser crítico. Qualquer profissão, se executada de forma mecânica e maquinista, distancia-nos da nossa humanidade. Se pensarmos que o teu trabalho é fazer cinema, que práticas desenvolveste ao longo dos anos que te ajudam a criar um ambiente criativo, colaborativo e respeitoso enquanto filmas?

Pessoalmente foi o cinema que me salvou de trabalhos sem agência. É verdade que o cinema também pode ser repetitivo, mas a diferença para mim é o controlo que tenho. Por exemplo recentemente comecei a fazer tricô, e adoro, é super repetitivo, estou ali a fazer a mesma coisa horas e horas, mas tenho agência sobre como trabalho e isso significa que nunca é forçado. Quando trabalhamos sobre as ordens de um patrão, geralmente mal pagos, e por necessidade, porque precisamos do salário, as dinâmicas são imediatamente exploradoras. Tenho uma aversão a poder, a patrões, e por isso, como realizadora, nunca me vi como alguém que agora vai andar a mandar ordens, que horror.

Tento sempre que o set de rodagem seja um lugar colaborativo e horizontal, em que todas as pessoas têm uma voz, e isso beneficia o meu trabalho porque significa que não tenho de ter todas as soluções e respostas (algo que por vezes é esperado da realizadora). Dá-me a liberdade de dizer ‘Eu não sei como resolver isto’ e resolvemos os problemas como colectivo.

O mesmo sobre aquela noção que sempre li de realizadores que escondem coisas dos actores e lidam com as dinâmicas durante a rodagem como instrumentos para manipular actores: nunca senti qualquer vontade de fazer isso, gosto de ser o mais transparente com as intenções de cada cena para poder haver diálogo em pé de igualdade. 

Sei que já estás a preparar o teu próximo projeto. Podes-nos falar um pouco sobre ele e de como a tua experiência com o “On Falling” irá informar a forma como escreves ou realizas a tua próxima longa?

No próximo filme vou continuar a olhar para o mundo do trabalho, mas desta vez no espaço do escritório, já estou a escrever o filme há alguns anos e por isso quero focar-me nele agora. Em relações a lições, aprendi muito, nunca trabalhei com tantos actores, com equipas tão grandes, levo toda uma experiência comigo. Acho que vou estar mais segura das minhas intenções com o próximo filme, o processo de escrita e desenvolvimento do ‘On Falling’ foi mais duro por ter sido bastante questionada por vezes sobre certas escolhas, ou pelo facto do filme não ter antagonistas directos, por exemplo. Foi muito questionado se audiências perceberiam a Aurora e os temas do filme. Agora quando vejo o filme a viajar pelo mundo e as audiências a falar do filme apercebo-me de que as escolhas em que cismei foram as correctas. Por isso, vou tentar perder menos tempo a questionar as minhas intenções no futuro, mas provavelmente precisava de fazer este filme para ganhar essa confiança. 


Há alguma mulher profissional do cinema ou audiovisual que te inspire profissionalmente?

Alguma? Tantas! Tive o privilégio de trabalhar com mulheres incríveis neste filme, que não só desempenharam papeis fundamentais na criação do ‘On Falling’, mas que a nível pessoal foram dos apoios mais importantes em períodos difíceis do filme.

Desde o desenvolvimento do argumento, onde trabalhei com a fantástica consultora de guiões Françoise Von Roy, e que me ajudou sempre a ganhar forças para lutar pelo filme que queria; a Joana Santos, que durante as filmagens foi a melhor companheira de viagem que eu podia ter pedido: focada, gentil com toda a equipa, com uma dedicação incansável e um talento que nunca mais acaba; contei também com a incrível Inês Teixeira, responsável pela anotação e continuidade, mas que fez muito mais e foi um apoio constante neste processo. Depois, já na pós-produção, tive o prazer de trabalhar com uma das melhores montadoras a trabalhar hoje, a Helle le Fevre, uma pessoa fantástica que me veio salvar num momento difícil, e a Inês Adriana, que fez o design de som, e sempre investida nos detalhes e a puxar-me a mim e ao filme. Ambas encontraram-me quando eu estava nos últimos quilómetros da maratona, praticamente estourada, e foram incríveis na dedicação e energia que trouxeram para o projecto.

Este filme não seria o mesmo sem a sorte que tive em me cruzar com cada uma delas.

Onde te vês daqui a dez anos e que mensagem deixarias às companheiras do cinema e audiovisual a trabalhar em Portugal?

Eu quero continuar a fazer filmes. Estatisticamente o panorama não é famoso.

A nível Europeu 24% de primeiras obras são realizadas por mulheres, mas na terceira obra o número desce para 14%… Isso prova que há muitas realizadoras que, embora entrem na indústria, não conseguem chegar ao terceiro filme. Eu já tenho pelo menos três mais ideias para filmes que quero fazer. Por isso, deixo já aqui escrito: se não chegar ao terceiro filme, não foi por falta de ideias.

A nível de mensagem, obrigada, porque até agora tenho recebido muitas mensagens de apoio de mulheres Portuguesas na indústria. Vamos continuar, há muito por fazer e ultimamente os filmes realizados por mulheres têm sido dos meus favoritos e quero ver mais!

Entrevista da nossa associada Paula Miranda

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LAURA GONÇALVES E ALEXANDRA RAMIRES